quarta-feira, 26 de março de 2008

O Velho Mestre





Nesta entrevista concedida ao jornalista Ignacio Ramonet, Fidel Castro reflete sobre o futuro de Cuba após ele deixar o governo. Autoridade máxima na ilha desde que a revolução liderada por ele ter tomado o poder em 1959, Fidel anunciou hoje que não seguirá como presidente de Cuba. A entrevista abaixo faz parte do livro Fidel Castro: Biografia a duas vozes (Boitempo Editorial).



Se você, por qualquer circunstância, desaparecesse, Raúl seria seu substituto
indiscutível?


Se amanhã me acontece alguma coisa, com toda a certeza a Assembléia Nacional se reúne e o elege, não resta a menor dúvida. O Escritório Político se reúne e o elege. Mas ele já tem quase a minha idade, está me alcançando, é um problema de geração. Temos sorte de os que fizeram a Revolução já terem formado três gerações. Também não se pode esquecer dos que nos precederam, os antigos militantes e dirigentes do Partido Socialista Popular, que era o partido marxista-leninista, e conosco veio uma nova geração. E depois, a que vem atrás de nós, e imediatamente depois, as da campanha de alfabetização, da luta contra bandidos, contra o bloqueio, contra o terrorismo, da luta em Girón, dos que viveram a Crise de Outubro, as missões internacionalistas… Muita gente com muitos méritos. E muita gente na ciência, na técnica, heróis de trabalho, intelectuais, professores. Essa é outra geração. Somem-se os que agora são da Juventude e universitários e assistentes sociais, com quem temos as relações mais estreitas. Sempre houve relações estreitas com os jovens e os estudantes.

Ou seja, você acredita que seu verdadeiro substituto, mais do que uma única pessoa, mais do que Raúl, seria mais propriamente uma geração, a geração atual?

Sim, já há algumas gerações prontas para substituir outras. Tenho confiança, e sempre digo isso, mas estamos cientes de que são muitos os fatores que podem ameaçar um processo revolucionário. Há os erros de caráter subjetivo… Houve erros, e temos a responsabilidade de não ter descoberto determinadas tendências e erros. Hoje eles já foram superados.
Eu disse o que aconteceria amanhã; mas já estão aí as novas gerações, porque a nossa está acabando. O mais jovem – digamos, falei do caso de Raúl – é apenas uns quatro anos mais novo que eu.
Essa primeira geração ainda coopera com as novas, que acatam a autoridade dos poucos que vamos ficando. Há a segunda; agora a terceira e a quarta… Eu tenho uma idéia clara do que vai ser a quarta geração, porque você vê os garotos da sexta série fazendo seu discurso. Que talento estamos descobrindo!
Descobrimos milhares de talentos, esses garotos impressionam, causam impacto. Não se sabe quanta aptidão e quanto talento há no povo. Eu defendo a teoria de que a aptidão é natural; se não for para uma coisa, será para outra, para o computador, para a música, ou para a mecânica. A aptidão é natural, uns a têm para uma coisa e outros para outra. Agora, desenvolva e eduque uma sociedade completa – isso é o que estamos fazendo – e veremos no que vai dar. Esses são os oito milhões que, depois do primeiro ano do período especial, subscreveram: “Sou socialista”.
Eu tenho muita esperança, porque vejo com clareza que esses que chamo de quarta geração vão ter três, quatro vezes mais conhecimento que nós da primeira, e mais de três vezes o conhecimento da segunda. E a quarta deve ter, com tudo o que se está fazendo agora, pelo menos duas vezes e meia o da terceira. Escute bem o que vou dizer: virão mais pessoas para ver o desenvolvimento social deste país, as coisas sociais deste país, que as praias de Cuba. Nosso país já faz coisas… Um país pequeno que pode fornecer o pessoal de que as Nações Unidas necessitariam para a campanha que o secretário-geral propôs para liquidar a aids na África. Hoje isso não pode ser feito sem os médicos cubanos. Entre Europa e Estados Unidos, não chegam a mil os médicos que vão aonde estão nossos médicos. Digo mil porque estou exagerando, não se sabe quantos… Nós oferecemos às Nações Unidas 4 mil médicos; agora já estão lá mais de 3 mil. Então isso nos dá uma certa satisfação; neste país bloqueado, neste país que tem sofrido mais de quarenta anos de bloqueio e dez anos de período especial. Criamos capital humano, e capital humano não se cria com egoísmo, estimulando o individualismo na sociedade.

Você está dizendo que esta Revolução não está esgotada?

Sem dúvida ainda não a concluímos, vivemos na melhor época de nossa história, a de mais esperança em tudo, e você vê isso em toda parte.
Tudo bem, é verdade, eu aceito a crítica de que cometemos alguns erros de idealismo, quem sabe quiséssemos ir rápido demais, quem sabe tenhamos subestimado forças, o peso dos costumes e outros fatores. Mas nenhum país enfrentou um adversário tão poderoso, tão rico, sua máquina de publicidade, seu bloqueio, uma desintegração do ponto de apoio. A União Soviética desapareceu e ficamos sozinhos, mas não vacilamos. Sim, a maior parte do povo nos acompanhou, não digo que todos, porque alguns desanimaram, mas temos sido testemunhas das coisas que esse país já fez, como resistiu, como avança, como se reduz o desemprego, como cresce a consciência.
Não é necessário medir nossas eleições pelo número de votos. Eu as meço pela profundidade dos sentimentos, pelo calor, vejo isso já há muito anos. Nunca vi os rostos mais cheios de esperança, com mais orgulho. Isso tudo vem se somando, Ramonet.

Você acredita que a substituição pode acontecer já sem problema?
De imediato não haveria nenhum tipo de problema; e depois muito menos. Porque a Revolução não se baseia em idéias caudilhistas nem no culto à personalidade. Não se concebe um caudilho no socialismo, não se concebe também um caudilho numa sociedade moderna, em que as pessoas façam as coisas apenas porque têm confiança cega no chefe ou porque o chefe assim pediu. A Revolução se baseia em princípios. E as idéias que defendemos são, já faz tempo, as idéias de todo o povo.

Mas a pergunta que alguns se fazem é se o processo revolucionário, socialista, em Cuba, pode também ser derrubado.
Será que as revoluções estão fadadas a desmoronar, ou são os homens que podem fazer as revoluções desmoronarem? Será que os homens podem impedir, será que a sociedade pode impedir que as revoluções desmoronem?


Eu sempre me faço essas perguntas. E preste atenção no que vou dizer: os ianques não podem destruir esse processo revolucionário, porque temos todo um povo que aprendeu a manejar armas; todo um povo que, apesar dos nossos erros, possui um nível de cultura, conhecimento e consciência que jamais permitirá que este país volte a ser uma colônia deles.
Mas este país pode se autodestruir sozinho. Esta Revolução pode ser destruída. Nós sim, nós podemos destruí-la, e seria nossa culpa. Se não formos capazes de corrigir nossos erros. Se não conseguirmos pôr fim a muitos vícios: muito roubo, muitos desvios e muitas fontes de abastecimento de dinheiro dos novos ricos.
Por isso estamos agindo, estamos caminhando para uma mudança total da nossa sociedade. É preciso voltar a mudar, porque tivemos tempos muito difíceis, geraram-se desigualdades, injustiças. E vamos mudar sem cometer o mínimo abuso que seja.
Haverá uma participação cada vez maior, e seremos um povo que terá uma cultura geral integral. Martí disse: “Ser culto é o único modo de ser livre”. E, sem cultura, não há liberdade possível, Ramonet.
Por isso também tenho fortes reservas e críticas sobre a globalização neoliberal, um sistema em que muitas pessoas passam fome. Isso de viver no engano, na mentira, semeando egoísmo, gerando consumismo. Para quê? Para que o homem alcançou essa condição, se ainda nem é capaz de garantir sua sobrevivência?
Não podemos erguer um monumento à nossa capacidade política, o mundo é ameaçado por um monte de perigos. Como sou otimista, eu tenho esperança, sim, de que este mundo vai sobreviver, porque o vejo reagir, vejo que o homem, apesar de seus erros e seus milênios de história – uns poucos milênios, três ou quatro –, em apenas um século multiplicou seus conhecimentos. Mas também muitos desses progressos serviram para semear veneno, servem para transmitir idéias falsas e transmitir informações errôneas.
Eu analiso quando avançamos e quando houve retrocesso, quando caímos na rotina, e quando caímos no plágio. Algumas poucas qualidades, como o costume de não plagiar, de confiar no próprio país, de combater o chauvinismo… Não existe um país melhor que outro, não existe um povo melhor que outro, todos têm suas características nacionais, culturais. Você pode ver na América Latina, somos um conjunto de povos que falamos o mesmo idioma, temos quase, quase a mesma cultura, a mesma religião, a mesma idiossincrasia, temos a mesma miscigenação.
A gente vê que na Europa estão se reunindo os finlandeses, os húngaros e pessoas que falam uns idiomas impossíveis, os alemães, os italianos e todos os outros, um continente que passou cinco séculos em guerra… Pois bem, podemos felicitá-los, apesar de meus critérios críticos, pelo nível de unidade que alcançaram. E digo que vão beneficiar todo o mundo se tiverem êxito. Agora, é preciso ver como vão obter isso, porque os problemas, nessa era de globalização neoliberal, são muito complicados, e você sabe muito bem.
Eu lhe agradeço o interesse. Seu interesse me estimulou muito, porque também li muitos dos seus artigos, seus livros nos têm sido úteis, e o que desejamos é que continue escrevendo livros para nos beneficiar, pois ainda temos muito que conhecer e muito que aprender. Você tem nos ajudado a formar uma cultura geral integral. Porque como se pode viver neste mundo sem essa cultura geral integral? Sem isso o mundo não se salva.
Eu espero também que muitas das coisas que estamos fazendo sejam experiências que se multipliquem. Não desejamos a paternidade nem a patente; ao contrário, ficamos orgulhosos quando alguém faz alguma coisa que possa ser útil inspirado no que se faz aqui.
Trabalhamos muitas horas, para mim foi muito prazeroso, e dentro de alguns minutos vamos nos separar.

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